Autoridades epistêmicas e meta-expertises: reflexões sobre ciência e fé para tempos conturbados sobre o papel dos cientistas

Fernando Pasquini
31 min readJun 12, 2020

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O Rei-Filósofo de Platão: polêmica antiga e atual

E lá vamos nós em mais um texto sobre algumas controvérsias recentes sobre ciência e pandemia. Peço desculpas pelo tamanho do texto, mas não tive escolha. Você não precisa ler todas as seções.

Boa parte do que está aqui resulta de algumas reflexões e estudos pessoais que me vieram, na maior parte, após assistir à excelente mini-conferência promovida Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) intitulada “Cristianismo & Autoridade da Ciência”, realizada entre 26 e 28 de maio de 2020. O tema é atual, e minha proposta, aqui, é comentar e tentar expandir algumas reflexões sobre temas tratados em pelo menos duas das palestras: “Cristianismo e a Autoridade da Ciência”, do Guilherme de Carvalho, e “Tradição, Autoridade e o Valor da Ciência”, do Marcelo Cabral. Para quem não sabe, também sou associado da ABC2, líder de um grupo local, e escrevo para tentar trazer mais algumas ideias para a nossa conversa, visando sempre o nosso crescimento em compreensão e esclarecimento.

Também tenho outros motivos pessoais para escrever sobre isso, e que também deveria deixar claros. Em primeiro, devo dizer que, muitas vezes no decorrer desses tempos de pandemia, me senti no meio de algo como um “fogo cruzado” diante de algumas polêmicas recentes no meio cristão envolvendo discussões sobre o papel da ciência na vida pública (como o triste episódio que resultou em discussões bastante acaloradas nas redes sociais sobre o uso do termo “endeusamento da ciência” no site da Coalizão pelo Evangelho). Tive amigos muito queridos envolvidos no debate, e, por isso, resolvi mergulhar um pouco nos estudos da área para tentar enxergar algumas coisas com mais clareza e, quem sabe, de alguma forma, conciliar os argumentos que, a um primeiro olhar, parecem incompatíveis mas, na verdade, não acho que são.

O outro motivo pelo qual me aventurei nisso é porque, afinal, eu posso me considerar um cientista — tenho doutorado em Engenharia Elétrica e sou professor universitário em Engenharia Biomédica — e, por isso, esses temas dizem respeito. “Mas você é engenheiro, não é?” Bem, devo dizer que, hoje, principalmente no ambiente de pesquisa, é difícil separar a ciência da tecnologia: no meu doutorado, por exemplo, dificilmente posso dizer que trabalhei com desenvolvimento tecnológico; na verdade, trabalhei mais com as chamadas engineering sciences, lidando com métodos de teoria da informação e estatística Bayesiana para modelagem na área de neurociência. Acho que seria mais um impostor me declarando como projetista do que como cientista. Mas, além disso, e mais importante ainda, nos últimos anos acabei me afastando dessa área e hoje trabalho ainda mais diretamente com a interface entre ciência e decisões públicas sobre seu uso na sociedade — atualmente integro o Núcleo de Inovação e Avaliação Tecnológica em Saúde (NIATS-UFU), no qual lidamos com diversas metodologias e diretrizes para elaboração de pareceres técnico-científicos visando a implementação de novas tecnologias em saúde na sociedade (incluindo, por exemplo, revisões sistemáticas, avaliação de viés, etc). Refletir sobre a autoridade da ciência e seu papel ao nortear as decisões que vamos tomar como sociedades se tornou algo praticamente obrigatório para mim.

Antes de tudo: sobre a ciência da pandemia

Eu pensei seriamente deixar para o final os meus comentários sobre as notícias e reviravoltas que têm surgido em torno da ciência e da atual pandemia, mas resolvi fazer isso antes de entrarmos em discussões mais teóricas. Reconheço o perigo: estou começando o texto pela parte mais polêmica. Por isso, é possível que eu esteja errado em alguns julgamentos; caso discorde, sugiro que persista na leitura mesmo assim: mais para frente, tento trazer alguns conceitos e teorias que independem da situação atual e podem nos ajudar a conversar melhor sobre o assunto.

Bem, os dias são de confusão. Depois de questionamentos sobre origens dúbias de dados científicos, retrações de autores no artigo da Lancet e mal-entendidos em comunicações da OMS, está bastante claro que a confiança na ciência da pandemia está bastante prejudicada hoje.

Mas eu gostaria de ressaltar minha expressão: “ciência da pandemia”. Ou seja, estamos falando de apenas uma parte da ciência. E creio que isso já toca no cerne da maioria dos problemas. Um erro óbvio, mas que infelizmente, está sendo cometido o tempo todo, é olhar para os problemas da ciência voltada para as questões pandemia e aplicar isso à ciência como um todo. Ou seja, questionar o todo — incluindo descobertas em toda a história da ciência — a partir das partes. Isso, é claro, facilmente termina em negacionismo científico e teorias conspiratórias como terraplanismo e coisas do tipo. Vários motivos levam a essa atitude, os quais muitos estão explorando hoje, e sobre os quais também faremos alguns comentários a seguir. Mas antes, tenho uma outra preocupação.

Tenho visto muitas manifestações de medo de que, diante das recentes polêmicas da ciência da pandemia, a população dê cada vez mais passos em direção ao negacionismo. Sim, eu sei que o brasileiro sempre se supera em, desculpe o termo, burrice. E eu sei que o anticientificismo tem crescido muito ultimamente e levado a manifestações absurdas na internet (aliás, será que não estamos mais conscientes disso só porque mais pessoas ganharam voz na internet? Será que realmente cresceu a burrice, ou seria apenas a inclusão digital? Não sei). Mas, independente de tudo isso, o que vamos fazer, em contrapartida? A atitude da maioria me, parece, às vezes, sair por aí defendendo a confiabilidade da Ciência de uma forma geral, falando de Galileu e Newton, e ligando tudo isso à situação atual. Acho isso perigosíssimo, porque apenas reforça a confusão. Precisamos simplesmente ressaltar o fato óbvio: não confundir o particular com o geral. Como bem colocou Marcelo Cabral em uma de suas palestras, existem diversos status epistêmicos para diversas teorias e afirmações científicas, e seria um erro atribuir apenas um deles, de forma uniforme, para todo o conjunto da ciência.

Aliás, acho crucial que, como cientistas, reconheçamos e afirmemos os problemas da ciência da pandemia. Penso, por exemplo, na sabedoria em comentários simples feitos em um site de divulgação. Creio que é disso que precisamos:

“O erro de comunicação da OMS deve reforçar uma importante lição sobre a pandemia: muitas das coisas que pensamos que sabemos sobre o vírus são suscetíveis de mudar conforme o tempo passa. Isso faz parte do processo de tentativa-e-erro que é a ciência. Mas, por enquanto, o distanciamento social e as precauções como o uso de máscaras continuam sendo importantes, mesmo para pessoas que não se sentem doentes.”

Observe: ninguém, nem mesmo os cientistas, está muito certo sobre muitas coisas. Qual a solução, então? Aceitar que limão com bicarbonato de sódio vai te prevenir contra o COVID-19? Usar chapéus de alumínio e achar que a terra é plana? Não, e embora essa seja a atitude de muitos, devemos tomar muito cuidado para não achar que qualquer um que apareça questionando a ciência da pandemia esteja caindo nesse tipo de problema ou, talvez, incentivando-o.

Esse último ponto tem tudo a ver com as críticas levantadas contra alguns líderes evangélicos, alegando que estão sendo imprudentes ao levantar esses questionamentos em tempos em que o negacionismo e o conspiracionismo têm crescido. Para ser sincero, acho isso exagerado; às vezes me soa quase como que um tipo de paternalismo intelectual — como se tentássemos ocultar verdade de quem não está preparado para ela. E, além disso, é inefetivo: se está bem debaixo dos nossos narizes a verdade de que a ciência da pandemia está problemática, deixar de falar sobre isso só vai passar uma impressão de que os cegos somos nós; que estamos colocando uma confiança ingênua nas instituições ou mesmo caindo num tipo de cientificismo.

Por isso, repito: entendo que, como cientistas, devemos esclarecimentos sobre possíveis falhas e incertezas. Aliás, penso que a comunidade externa não só pode como tem o direito de julgar essas questões; entendo que, nesse caso, como mostrarei adiante, não se trata de “falar sobre o que não se sabe”, porque não são juízos técnicos, mas, sim, juízos morais ou sociais. Penso nos seguintes pontos:

  1. Controvérsias científicas demoram para se estabelecer — autores como Francis Collins e Robert Evans (aos quais nos referiremos mais adiante), por exemplo, falam da “regra dos cinquenta anos”, que embora acho um número arbitrário, uma vez que cada área científica teria sua própria velocidade, mas no geral, nos recomenda cautela. Como dizem os autores, apolítica acaba sendo sempre mais rápida que a ciência, o que exige que pensemos bem no papel limitado que o conhecimento científico deve ter na tomada de decisões políticas.
  2. Artigos científicos precisam de tempo para serem revisados por pares — e temos visto hoje diversas acusações sobre o relaxamento de padrões de julgamento científico, um tipo de excepcionalismo bastante perigoso. Não obstante, nessa área, o possível impacto mundial dos resultados e as pressões geopolíticas tornam as possibilidades de fraude bastante tentadoras. Alguém diria: “ok, mas a ciência está sendo capaz de lidar com isso, certo?”. De alguma forma, sim, caso contrário não estaríamos descobrindo certas fraudes. No entanto, será que estamos sendo capazes de detectar todas? Veja o próximo ponto.
  3. A biomedicina e a epidemiologia hoje podem ser consideradas formas de data-intensive science, ou seja, envolvem metodologias tratando grandes volumes de dados, de diversas fontes, com várias camadas de algoritmos e processamento. E, como diria Bruno Latour, abrir a caixa-preta dessa tal Big Science muitas vezes é impossível. Revisão por pares, aliás, têm diversas limitações aqui, e apelar para ela como solução não funciona. A ciência de hoje é diferente da de ontem, com suas grandes redes de cooperação e toda a problemática envolvida na reprodutibilidade e auditabilidade das práticas de Data Science (que é, afinal, o que gerou todo o questionamento no estudo da Lancet). E tudo isso para ainda não falarmos de todas as polêmicas sobre ensaios clínicos randomizados e medicina baseada em evidências. Em suma: não estamos falando de ciência da pandemia da mesma forma como falamos de Galileu fazendo experimentos com seu plano inclinado.

Assim, por esses motivos, não acho que seja irrazoável suspender o julgamento em muitas situações hoje — na verdade, tenho a impressão (um pouco pessimista, reconheço) de os poucos escândalos que temos visto são só o começo. Mas isso, é claro, não implica substituirmos as afirmações dos cientistas por qualquer outra coisa. Se o status epistêmico da ciência da pandemia for baixo, temos que ser honestos e reconhecer que outras alternativas podem ser piores ainda, e, portanto, às vezes, o melhor a fazer é acatar os cientistas, mesmo que isso implique em prejuízos. Aliás, se somos cristãos, temos mais um motivo para nos tranquilizarmos: não precisamos fazer toda a justiça agora. O problema que muitas vezes vejo no conspiracionismo é uma ansiedade por querer ser esperto, e não ser enganado por ninguém e de forma alguma, que se torna um tipo de paranoia. No entanto, “nada julgueis antes do tempo, até que o Senhor venha, o qual também trará à luz as coisas ocultas das trevas, e manifestará os desígnios dos coraçöes” (1 Coríntios 4:5).

Penso numa possível objeção: “mas será que, ao suspender o julgamento quanto à ciência dos tempos de pandemia, não estaríamos, de alguma forma, atentando contra tecido social? Já vivemos em tempos de pouca confiança nas instituições. Por que reforçar isso?” Penso que não é bem assim. Entendo que o tecido social já está rompido, e a pandemia serviu apenas para manifestar o fato. De uma hora para outra, vimos que não temos mais formas de confiar uns nos outros, e não acho que a solução será um apelo ingênuo para voltarmos a confiar. Ninguém volta a habitar numa casa em ruínas simplesmente fingindo que ela está construída. Existe um longo trabalho de reconstrução das instituições. Muita coisa precisa ser repensada e, como mostrarei a seguir, temos propostas bem interessantes na área dos estudos da expertise.

Por fim, é sempre bom alertar quanto às “brigas de torcida” de redes sociais envolvendo ciência, principalmente em um momento que posicionamentos políticos começaram a se mesclar bastante com posicionamentos científicos. O orgulho pode nos levar a ser muito rápidos a endossar ou rejeitar qualquer novo estudo que surgir sem nos darmos ao tempo necessário para discussão e averiguação pelos experts. Posso dizer que tudo isso passou a fazer parte daquilo que Guilherme de Carvalho chama de “guerra civil de sentimentos morais”, como se, agora, compartilhar nas redes sociais um estudo positivo ou negativo com relação a hidroxicloroquina, por exemplo, te torna uma pessoa mais moral ou imoral (repare que, no caso da ciência, um lado preza mais pela moralidade ligada ao respeito às instituições, e outro preza mais pela moralidade ligada à coragem para desafiá-las). Eu estou preferindo me calar, esperar e ver; mas mesmo assim, já sei que mesmo assim estaria suscetível a ataques, como se, ao não compartilhar um novo estudo da Lancet, ou mesmo não atualizar minha imagem de perfil com uma frase “em apoio da ciência”, eu seja um negacionista. Por outro lado, se posto algum resultado, também passo a impressão de que o estou apoiando incondicionalmente. Estamos entre a cruz e a espada…

Como vamos pensar, portanto, a questão da confiabilidade da ciência hoje, e seu papel na tomada de decisões políticas? Além disso, qual o papel que a fé cristã poderia desempenhar nisso tudo? O assunto é muito vasto, e você pode ver que minha tentativa de fazer breves comentários já ficou enorme. Mas vamos lá. Em primeiro lugar, creio que vale a pena explorarmos nossos posicionamentos diante da autoridade científica, algo que Guilherme de Carvalho já tem feito muito bem em seus estudos, e sobre os quais gostaria de traçar algumas reflexões.

Anarquismos e absolutismos epistêmicos, ou: de zelotes e fariseus

Eu não gostaria de repetir todos os argumentos que Guilherme de Carvalho, na sua palestra “Cristianismo e Autoridade da Ciência”, ofereceu para a existência real de autoridades epistêmicas na sociedade; mas como sei que a palestra não foi gravada, ofereço pelo menos a sua entrevista no programa Destaque ABC2, onde ele oferece alguns dos argumentos. Guilherme se baseou bastante na teoria kuyperiana de esferas de soberania, apoiando-se na obra mais recente de David Koyzis, “We Answer to Another: Authority, Office, and the Image of God”, que em boa parte também é um ótimo antídoto contra teorias construtivistas de projeção ou de atribuição de autoridade, como em Michel Foucault. A conclusão é que a ciência consiste em uma real e autêntica fonte de autoridade nas sociedades contemporâneas — uma autoridade a que atribuirei o adjetivo “epistêmica”.

Mas um dos pontos que mais me chamou atenção, e que julguei interessante trabalhar, é o paralelo que Guilherme fez entre autoridades políticas e autoridades epistêmicas. Quem sabe, como cristãos, não poderíamos também aplicar o texto Romanos 13, sobre a origem divina das autoridades terrenas, para pensarmos também no que devemos a autoridades epistêmicas — ou seja, pessoas que detêm certos tipos de conhecimento e que, uma vez que não podemos ter acesso a ele, deveríamos nos submeter?

Acredito que isso pode ser muito útil para entendermos qualquer atitude negacionista da ciência como um tipo de anarquismo epistêmico. Veja bem: um negacionista ou conspiracionista sempre age de uma perspectiva anti-establishment, deduzindo sempre que qualquer imposição de autoridade seja para o domínio e coerção de populações (e, nesse ponto, mesmo que não conheça, não é muito diferente de alguns seguidores de Foucault). Ele acaba sendo um anarquista, em um certo sentido, porque acha que qualquer poder é necessariamente corrupto e precisa ser subvertido. Além disso, é comum que, tanto em ideologias mais progressistas como tradicionalistas, o cidadão comum seja colocado em oposição a essas elites corruptas, e elevado como fonte do senso comum necessário para subverter essas torres de marfim.

Mas o anarquismo epistêmico, como assim resolvi chamá-lo, também é importante de ser pensado dentro dos meios cristãos: uma posição radicalmente voltada para a ideia de “Cristo contra a cultura” obviamente irá repudiar todo e qualquer establishment científico, alegando que o “mundo jaz no maligno”. Estaria explicada, então, uma boa parte da desconfiança extrema que pode surgir nos meios cristãos com relação à ciência. Uma ênfase exclusiva no lado da antítese, em detrimento do lado da graça comum, facilmente levará alguns à tarefa exclusiva de “desafiar a nomenklatura científica”.

E talvez, para os cristãos, a palavra anarquismo nem seja a melhor, uma vez que boa parte desses cristãos há de reconhecer a existência real de autoridade epistêmica. No entanto, muitas vezes acredita-se que ela deve ser destruída, purificada das idolatrias pagãs, e reconstruída do zero, sob princípios cristãos. Bem, o que isso te lembra? Estaríamos falando aqui de um tipo de movimento de teocracia epistêmica, mais próximo, talvez, dos movimentos teonomistas e reconstrucionistas do século passado. Sinceramente, acho isso problemático e talvez longe do que Deus deseja para o seu povo nesses tempos (embora não disponha de espaço para muitos argumentos aqui). Falando de forma breve, o que penso é que nós, cristãos, inevitavelmente vamos viver sob autoridades não cristãs (políticas ou epistêmicas), e, diante disso, é importante aprendermos a cooperar pelo bem da cidade (Jeremias 29), visando o bem comum e a presença cristã fiel.

Mas, agora, também é muito importante observar o outro lado, e evitarmos o outro extremo. Se Romanos 13 é bom para refutar anarquistas, também devemos tomar o cuidado para não o usarmos como já o usaram várias para justificar a permanência de governos injustos, como o regime nazista. Creio que, se existe espaço para algum tipo de desobediência civil diante de autoridades políticas, algo parecido deveria existir na área do conhecimento — um tipo de, digamos, “desobediência epistêmica”. Mas o que seria isso? Como seria possível, por exemplo, um leigo questionar o conhecimento de um expert? A resposta será dada adiante, utilizando os conceitos de Harry Collins e Robert Evans de meta-expertises. Mas o ponto que deve ficar claro, por enquanto, é que o medo da anarquia epistêmica não pode nos lançar irrefletidamente para uma submissão cega ao rei — um tipo de argumento que me lembra bastante de alguns raciocínios monarquistas. Estaríamos diante do perigo de uma monarquia absolutista epistêmica? (Nesse ponto muitos anarquistas e monarquistas já devem estar bravos comigo por simplificar suas ideias; mas peço misericórdia: é só uma caricatura que estou usando para fins de analogia, tudo bem?).

Com isso, preciso fazer uma nota de cautela. Você e eu sabemos: a religião, hoje, é sempre vista como em conflito com a fé, e isso realmente preocupa muitos de nós que integramos a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Eu entendo completamente a preocupação com o fato de que falar de “endeusamento da ciência” levou a mídia apenas a reforçar os estereótipos de que cristãos estão contra a ciência, e que, por isso, são vistos quase como que “traidores da pátria”. Mas gostaria que refletíssemos: o que deveríamos fazer diante disso?

Eu não sei se faríamos bem se nos aproximássemos do mundo público apenas pedindo desculpas por nossos irmãozinhos e tentando apenas passar uma boa imagem (muitas vezes através de declarações nas redes sociais, por exemplo). O fato é que, ao conversar com alguns amigos, tenho visto que muitos cristãos interpretam atitudes desse tipo como um tipo de temor de homens que, diante de algum receio por perder postos de destaque ou consideração pública, poderia até mesmo levar a negociar elementos cruciais da fé (e negar situações que exigiriam, digamos, algum tipo de “desobediência epistêmica”). Dizem, muitos cristãos, que existem crentes por aí “se vendendo” para autoridades pagãs e que não são corajosos o suficiente para aceitarem a perseguição e a marginalização, e então, muitas vezes se orgulham de sua coragem por aceitarem essa marginalização. Às vezes acho que a acusação é injusta, mas não posso deixar de considerar como um perigo real.

Estamos falando de dois extremos, os quais não são muito novos: creio que é a antiga antiga briga entre os zelotes/essênios (os revolucionários e marginalizados) e os fariseus/saduceus (os “vendidos” para o império). Ambos foram grupos com ideias diferentes e opostas sobre o que significava preservar sua identidade diante de autoridades externas. Creio que Jesus nos oferece um caminho melhor, evitando os extremos. Gostaria que pudéssemos discernir esse caminho e andar mais juntos. Quem sabe até não percebamos que existe espaço para ambas dois tipos de vocação: cristãos “da cidade” e cristãos “do deserto” — ou seja, cristãos em atividades mais cooperativas, e cristãos em atividades mais denunciadoras? De qualquer forma, oro para que, pelo menos uma coisa fique clara: como cristãos, deveríamos parar o tanto quanto possível de acusar uns aos outros de zelotes ou fariseus sem uma conversa clara e aberta entre irmãos. E, diante disso, aprendermos a corrigir uns aos outros em paciência e amor, sabendo que, seja como for, estamos caminhando juntos na missão de testemunhar publicamente do Reino de Deus.

Tendo colocado essas questões, gostaria de tentar fazer alguma contribuição na direção de alguma solução. Creio que seria importante explorar um pouco mais a fundo a natureza da autoridade epistêmica. E, para isso, vou me basear numa das leituras mais esclarecedoras que fiz nos últimos tempos: a teoria das expertises desenvolvida por Harry Collins e Robert Evans, exposta em detalhes em seu livro “Repensando a Expertise”.

Um convite aos estudos da expertise

Essa terceira parte do texto se voltará mais para a brilhante palestra do Marcelo Cabral durante a mini-conferência, intitulada “Tradição, Autoridade e o Valor da Ciência”. A tese central apresentada foi a seguinte:

“O que chamamos de ‘ciência’ é uma tradição (ou classe de tradições). Ela se diferencia não por um critério rígido, nem por um completo objetivismo em relação a valores e intenções, mas por ser uma tradição organizada em torno de um bem essencial, manifesta em uma rede de práticas comunitárias, com valores consagrados, critérios de validação e participação. Mais fundamentalmente, as ciências nos permitem um acesso cognitivo a uma parcela da realidade, uma realidade criada por Deus que nos convida não somente a ‘aprendê-la’, mas também a participar dela.”

A palestra expôs com muita clareza algumas discussões clássicas sobre o problema da demarcação na filosofia da ciência, e como a ideia de tradição acaba sendo a mais adequada para garantir sua legitimidade, em oposição a outras ideias (como o positivismo lógico ou o popperianismo). Marcelo foi bem enfático ao ressaltar o caráter da ciência não como um método rigoroso e objetivista, mas como uma tradição — e nesse ponto, notamos aí traços das teorias de Alasdair MacIntyre sobre tradições e práticas sociais. Veja como isso é importante para estabelecermos a autoridade da ciência: por ser uma tradição, a ciência carrega consigo padrões de excelência internos, configurados e mantidos por seus próprios praticantes. Marcelo especificou esses padrões, listando os valores e virtudes epistêmicas que são reforçados e enfatizados pela comunidade: entre os valores, foram ressaltados: adequação empírica, falseabilidade, abrangência (ou poder explanatório), capacidade de predição, consiliência, conexão com outras teorias, e simplicidade; entre as virtudes: rigor, atenção a detalhes, atenção a possíveis vieses, autonomia em relação a outros atores, e revisão por pares.

Harry Collins e Robert Evans também seguem essa ideia de ciência como tradição ou comunidade, baseando-se também nas ideias de conhecimento tácito de Michael Polanyi. Os autores também dão nome às virtudes e padrões de excelência mantidos pela comunidade: expertise. Cientistas possuem uma posição privilegiada em relação à realidade pois, por meio de sua participação em uma comunidade de prática, desenvolvem uma expertise. Podemos dizer, assim, que a expertise é a fonte da autoridade epistêmica da ciência.

Collins e Evans, então, propõem uma nova área de estudos, no qual possamos perguntar quais são os tipos, a validade e a operação dos diversos expertises em uma sociedade e, assim, entender melhor a legitimidade e extensão das autoridades epistêmicas na sociedade. Os autores começam seu livro comentando sobre a perda de credibilidade da ciência nos últimos dias, do crescimento de um tipo de anti-intelectualismo e supervalorização do leigo, e das respostas comuns dos cientistas falando sobre a importância de alguém “saber do que se está falando”. A resposta, segundo eles, se encontraria nos estudos da expertise. “Para compreendermos o que é ou não ‘saber do que se está falando’, precisamos de uma nova sociologia da expertise (p. 3).

O autores também ressaltam que essa teoria da expertise precisa ir muito além do que aquilo que os autores chamam de “sociologia da atribuição”; ou seja, uma ideia antirrealista de que a expertise simplesmente como uma atribuição arbitrária feita por atores sociais, e não baseada em realidades objetivas. Não — “a abordagem realista adotada aqui é diferente. Ela parte da visão de que a expertise é uma posse real e substantiva de grupos de experts e de que indivíduos adquirem expertise real e substantiva por meio de sua associação a esses grupos” (p. 3–4). Bingo: é disso que Guilherme falou ao defender a realidade da autoridade epistêmica e Marcelo falou ao ressaltar as práticas sociais das comunidades científicas.

Falar sobre a realidade da expertise, contra uma visão atributiva da mesma, também nos protege de acusações generalistas ou injustas contra a ciência ou mesmo contra outras comunidades de prática (como a arte, por exemplo). Sim, é verdade que sempre há charlatães e mentirosos, fingindo uma expertise que não têm, e os autores passam boa parte do livro explorando essa situação. Além disso, é comum, de vez em quando, encontrarmos escândalos, como o de Alan Sokal, que conseguiram aprovar um artigo sem qualquer base na realidade em uma revista consagrada, o que provaria, de certa forma, que não há expertise real, mas apenas “uma rede de favores e prestígio acadêmico”. E, por fim, o próprio Collins, junto com Trevor Pinch, no livro “Dr. Golem”, ressalta como as próprias instituições e práticas muitas vezes colocam dificuldades na garantia desses padrões de excelência e expertise, discutindo, por exemplo, os charlatães na área médica:

“Falsos médicos raramente são desmascarados como resultado de erros médicos porque a equipe à sua volta está pronta para lhes dar ‘cobertura’. […] Consequentemente, muitos falsos médicos têm a oportunidade de aprender a função e tornarem-se consideravelmente bem-sucedidos. […] Por conseguinte, profissionais médicos que trabalham com falsos médicos podem ficar perplexos quando descobrem que foram enganados.” (p. 85, nota 63)

Todos esses problemas são muito reais e, devo acrescentar, acontecem muito hoje, tendo eu mesmo visto esse tipo de situação em minha trajetória acadêmica. Entendo que precisamos superar uma visão ingênua de uma comunidade de prática como sempre capaz de manter padrões reais de valor e virtude epistêmica , pois às vezes o que acontece é o contrário. Instituições reforçam fraudes e vícios, e os próprios autores, por exemplo, reconhecem os diversos problemas com a revisão por pares, e que “três décadas de pesquisa nos estudos da ciência e tecnologia nos mostraram que julgamentos internos feitos por um expert em relação a outro são sempre contestáveis” (p. 94).

Isso, no entanto, não nos deveria levar, novamente, a uma visão meramente atributiva da autoridade científica. Como exemplo disso, meu amigo André Venâncio têm uma palestra muito boa, realizada no I Fórum Nordestino de Cosmovisão Cristã, sobre “Os ídolos da ciência”, mas que, em certo momento, faz um comentário bastante peculiar, que foi separado e divulgado separadamente no canal do vídeo com o título “Há um autoritarismo velado na comunidade científica”. Tenho uma discordância aqui; embora não descarte a possibilidade de um mal-entendido ou apenas uma questão de ênfase (e, de qualquer forma, não desmerece o valor da palestra; André é muito competente e tem excelentes insights ali). O ponto é o seguinte: André lê e comenta uma frase de Henrique Lins de Barros: “A ciência tem suas normas e regras, seus códigos de conduta e seus valores , a fim de se preservar de qualquer aventureiro que venha a se intrometer. A ciência é para os especialistas e iniciados”. André considera autoritária esse tipo de atitude, e dá um exemplo do que isso seria na prática, quando uma pessoa quer questionar alguns experimentos científicos:

“Você pode tentar questionar os experimentos da teoria da relatividade? Pode, desde que você se sente aqui por alguns anos, e estude o assunto. Você não tem propriedade para falar disso, certo? Você vai ter que se sentar e aprender comigo; vou te ensinar todos os princípios da coisa, e aí, depois de alguns anos, você vai ter condições de entender esse experimento; e aí, claro, você vai concordar comigo, porque tudo o que você sabe sobre o assunto fui eu que te disse.”

Repare que o comentário sugere, de forma implícita, que a teoria da relatividade se resumiria a repetir de forma acrítica um determinado discurso ou prática, sendo sua “expertise” apenas um tipo de ilusão: o cientista mais experiente subiu sozinho, estabeleceu seu discurso vitorioso, e agora ninguém pode ou mesmo deve ousar retirá-lo de lá. Tenho que dizer que isso pode e, de fato, acontece — principalmente quando o cientista insiste que só ele pode falar e dispensa seus críticos rapidamente — , mas, por si só, o fato não deveria nos fazer negar a existência de expertise ou, consequentemente, toda e qualquer autoridade científica. Talvez o próprio André iria concordar comigo que não podemos jogar a água junto com o bebê.

Collins e Evans têm uma boa proposta para resolver esses problemas. Eles se propõem a, com uma melhor teorização sobre a expertise, oferecer formas reais de limitarmos e corrigirmos esses vieses internos da ciência, e, assim, passarmos a discernir os verdadeiros experts. Segundo eles, nenhuma comunidade de prática deve operar de forma isolada; pelo contrário, elas não só podem, como devem, ser julgadas por outras comunidades externas. Deve haver, e é muito importante que hajam “vozes que clamam do deserto”. E, diante disso, os cientistas não podem recorrer à ideia de que são experts e “sabem do que estão falando” para rejeitarem certas críticas. Sua expertise têm valor, mas o fato de serem experts em suas próprias áreas não os torna imunes a julgamentos e avaliações de outros experts — ou melhor, experts com outros tipos de expertise. Collins e Evans chamam esses outros tipos de expertise por interação e meta-expertise, aos quais vamos nos voltar a seguir. (Se quiser, você pode conferir o excelente artigo dos autores, “Transmuted expertise: How technical non-experts can assess experts and expertise” [Expertise transmutada: como não-experts técnicos podem avaliar experts e expertise]).

Fica claro que precisamos tanto ir além de um tipo de cientocracia ou domínio dos “Reis-Filósofos” (perceba que o problema é antigo, remontando a Platão) quanto, por outro lado, evitar cair num tipo anti-expertise ou anti-intelectualismo (Collins e Evans o chamam de “populismo científico-tecnológico). É preciso resguardar a autoridade epistêmica, mas ao mesmo tempo permitir um tipo de democracia nas tomadas de decisões envolvendo ciência. Collins e Evans chamam isso de Problema da Extensão: “como podemos saber de que maneira, quando e por que limitar a participação na tomada de decisões tecnológicas para que não desapareça a fronteira entre o conhecimento do expert e do leigo?” (p. 15). Vejamos, a seguir, suas propostas.

Meta-expertises e meta-critérios

Vamos começar mostrando a excelente contribuição dos autores na proposta uma “tabela periódica das expertises”. A tabela é extremamente importante ao nos ajudar a evitar simplismos, e nos fazer reconhecer certas nuances, principalmente nesses tempos de gritaria como do tipo “ouçam os experts, eles sabem mais do que você”, ou “o povo sabe do que está falando porque não está isolado nas torres de marfim dos cientistas”. Precisamos de um discernimento maior das situações, para entender quando alegações desse tipo se aplicam. Como os autores colocam, “essa abordagem [de classificação] fará parecer bizarro e grosseiro o fato de alguém ter simplesmente falado nos direitos dos ‘experts’, de um lado, nos direitos dos ‘leigos’, de outro, sem considerar as diversas formas de ser expert, a distribuição das distintas experiências entre diversos grupos e as relações entre esses grupos” (p. 5). A tabela se encontra a seguir.

Tabela periódia das expertises. Fonte: COLLINS, Harry & EVANS, Robert. Repensando a Expertise (p.21). Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

Não vamos, obviamente, explicar todos os itens da tabela; a ideia é pelos dar um gostinho para o leitor. Apenas ressaltamos a distinção dos autores entre expertises ubíquas e expertises especializadas. Expertises ubíquas são aquelas que praticamente todas as pessoas de uma sociedade desenvolvem, simplesmente por estarem inseridas nessa sociedade, como língua, hábitos, julgamentos morais, etc. Já as expertises especializadas exigem a entrada em algum tipo de comunidade específica de prática: como a arte, a ciência, ou mesmo um videogame.

Para o nosso objetivo, achamos por bem explicar melhor a terceira e a quarta linha da tabela, que lidam com os meta-expertises e os metacritérios. São esses os que habilitam o julgamento de certas formas de expertise. No caso dos metacritérios (quarta linha), falamos sobre critérios que nos ajudam a reconhecer a validade de um tipo de expertise, sendo eles as credenciais, as experiências e o histórico de desempenho. Os autores reconhecem que as credenciais e o histórico de desempenho podem, muitas vezes, ser critérios ruins: existem muitas expertises válidas que não acompanham credenciais reconhecidas ou mesmo não têm um registro amplo e acessível de seu histórico de desempenho. Os autores colocam como exemplos casos envolvendo criadores de ovelhas na região da Cúmbria e o de um grupo ativista questionando alguns resultados científicos sobre AIDS (p. 76). Ambos os casos envolviam um conhecimento bastante especializado e particular, porém não reconhecido formalmente ou sem histórico registrado de desempenho.

Meta-expertises, por sua vez, são formas de expertise que permitem julgar a validade de outros expertises. Os autores distinguem entre meta-expertises externos — ou seja, possuídos por pessoas que não participam de forma alguma da comunidade de prática— e meta-expertises internos. Os meta-expertises externos envolvem o discernimento ubíquo e o discernimento local. O caso dos criadores de ovelhas na Cúmbria é um excelente caso do discernimento local: os criadores possuíam uma experiência tácita sobre as condições da criação de ovelhas a qual os cientistas, interessados na implantação de uma usina no lugar, não tinham como saber.

No caso do discernimento ubíquo, falamos sobre formas generalizadas de julgar as práticas a partir de padrões morais ou sociais amplamente difundidos. Por exemplo: você se sente atraído a confiar no trabalho sobre espiritualidade cristã feito por um teólogo envolvido num escândalo de adultério? Pois bem: você não é teólogo, mas está exercendo um tipo de discernimento ubíquo, baseado em sua expertise ubíqua sobre moralidade. O mesmo pode acontecer com a ciência: Collins e Evans mostram como é inevitável que toda a sociedade esteja atenta para questões como honestidade, personalidade, inteligência, reputação, prestígio, integração a certas redes de cooperação, histórico de fracassos, estilo e apresentação de resultados e até mesmo nacionalidade. Assim, por um tipo de processo que os autores chamam de “transmutação”, o juízo advindo da expertise ubíqua se transfere para a expertise especializada.

Perceba que, no caso desses juízos, não estamos fazendo juízos científicos ou técnicos; estamos fazendo juízos sociais e morais. “A visão consensual dessas pessoas, na medida em que tinham uma visão, era decorrente de julgamentos sociais feitos em relação aos indivíduos com os quais se deveria concordar, e não de julgamentos científicos daquilo em que se deveria acreditar” (p. 73). Estes juízos não necessariamente nos levam a abraçar conspirações e pseudociência. O erro no negacionista está em justamente juntar seu discernimento ubíquo /local (social/moral) a uma falsa expertise especializada (“científico”). É como se dissessem: “se a ciência mainstream tem suas pontas soltas, então eu mesmo vou dizer como as coisas são a partir dos meus próprios métodos” — o que, obviamente, é um problema, que muitas vezes vem acompanhado de um tipo de populismo científico: “estou aqui para ajudá-los a validar as impressões ingênuas de vocês contra uma elite que quer corromper suas crenças ou manipulá-los”.

É claro que, quando uma situação existe um julgamento científico ou técnico, os julgamentos sociais e morais são ruins. Mas eles são importantes. Ressaltar o valor de outros tipos de expertise no debate público também é importante para evitarmos um tipo de cientocracia. É por isso que frases como a seguinte realmente me preocupam por seu simplismo:

Deixe-me esclarecer uma coisa: não tenho nada contra Átila Iamarino (na verdade, nem o acompanho muito), e só reproduzo isso aqui porque ele reflete uma opinião bastante generalizada. É verdade, até certo ponto, que certos julgamentos com relação a um expert só podem ser feitos por experts da mesma área. Mas isso invalida qualquer outro tipo de julgamento? Isso significa que qualquer voz que se levanta (muitas vezes, “do deserto”) é só uma opinião, e não um fato? Creio que não.

Sigo Collins e Evans em sua definição e rejeição de cientificismo: “a visão de que ‘questões proposicionais’ estreitamente delimitadas e colocadas por experts constituem o único modo legítimo de se abordar um debate acerca da ciência e da tecnologia no espaço público” (p. 6). As instituições científicas atuais não são as únicas responsáveis por toda afirmação verdadeira sobre o mundo natural. Há formas, digamos, “não-científicas” de autoridade epistêmica, e que não são — ouça bem — não são simplesmente uma pura intuição ingênua ou um apelo à “sabedoria popular”. Não estamos falando de pessoas sem expertise alguma julgando pessoas com expertise — ou seja, de um tipo de “populismo científico”. Estamos falando de diferentes expertises em diálogo. Essas expertises podem ser ubíquas (ou seja, comuns a toda a população) ou podem ser especializadas. E para esse último caso é que nos voltamos.

“À luz de nossas análises, a resposta parece ser que, na ausência de experiência especializada adequada, o cidadão pode fazer julgamentos técnicos apenas por meio da transmutação da expertise, a qual começa com a expertise social de discernimento ubíquo e local — uma questão de escolher em quem acreditar, em vez de em que acreditar.” (p. 211)

Na área da saúde, por exemplo, é comum que muitos médicos e enfermeiros trabalhando com a prática tenham conflitos e problemas legítimos com uma área mais científica, a biomedicina. As ciências médicas de fato envolvem um contato com realidades particulares que escapa, muitas vezes, aos métodos comumente preconizados pela ciência moderna — e quem faz esse tipo de afirmação é o próprio Alasdair MacIntyre, junto com Samuel Gorovitz. Diante disso, muitas vezes há um sério conflito de expertises. Muitas vezes, o que vemos é uma comunidade de experts querendo impor à outra a sua visão, alegando que só eles têm a expertise necessária para compreender a situação — mas observe: as situações às vezes são extremamente multifacetadas! Ameaça-nos, então, em um tipo de reducionismo dooyeweerdiano, ou, para usar Kuyper, um autoritarismo de uma esfera de soberania (epistêmica) sobre outra. Assim, se falamos sobre preservar a autonomia da ciência, precisamos também preservar cada a autonomia de cada outro domínio de expertise.

Nesse último exemplo, porém, já não estamos falando de expertises ubíquos ou externos, mas expertises especializados e internos (que dão origens às meta-expertises de coinosseur técnico, discernimento descendente e expertise referida). E, para explorar melhor essa questão, vamos para talvez um dos conceitos mais importantes que Collins e Evans propõem: a ideia de expertise por interação, que subjaz todos esses meta-expertises internos.

Expertise por interação

Provavelmente todos nós já ouvimos: “É fácil ficar aí só criticando; quero ver você vir aqui e fazer!”. A ideia tem sua parcela de verdade: pessoas sem expertise muitas vezes não tem condições de julgar um expertise porque não estão envolvidos com a prática. É a crítica normalmente levantada contra críticos de arte ou sociólogos da ciência: Collins e Evans dão vários exemplos, tendo eles mesmos, como sociólogos, sofrido esse tipo de crítica, e relatam a conhecida acusação que Marvin Minsky e Seymour Papert dirigiram a Hubert Dreyfus após sua publicação de uma crítica contra a inteligência artificial: segundo eles, Dreyfus era só um filósofo, e não tinha conhecimento prático nenhum sobre os métodos de inteligência artificial.

No entanto, Collins e Evans propõem, por meio de uma extensa argumentação (capítulo 3 do livro), que é possível, sim, dominar apenas a linguagem pertencente a uma forma de vida (ou tradição) sem ter qualquer imersão física ou prática nela. A esse domínio apenas da linguagem do expertise, e não de sua prática, os autores dão o nome de expertise por interação. A outra situação, onde se domina tanto a linguagem como a prática, chama-se expertise contributivo — ou seja, a expertise que permite ao praticante não só conversar e discutir sobre a prática, mas também contribuir efetivamente com ela.

O expertise por interação, segundo os autores, existe, e é justificado pelo que eles chamam de hipótese forte de interação: “essa hipótese assevera que, em princípio, o nível de fluência na linguagem de uma área que pode ser alcançado com sucesso por quem é somente um expert por interação é indistinto do nível que pode ser obtido por um perfeito expert contributivo” (p. 48).

Collins e Evans estão defendendo, aqui, o trabalho de diversos experts que não “fazem” algo propriamente dito, mas estão plenamente aptos para discutir sobre uma prática: sociólogos, etnógrafos, antropólogos, jornalistas especializados, gerentes, pareceristas científicos, revisores, críticos de arte, coinosseurs de vinho, árbitros esportivos, e muitos outros. Como argumentam, deveria ser muito óbvio, por exemplo, que um arquiteto pode julgar ruim a habilidade de um construtor ao dispor os azulejos em uma parede, mesmo que ele mesmo não saiba como fazê-lo.

A expertise por interação é uma expertise especializada que precisa ser reconhecida e dada um lugar importante em nossas discussões sobre a relação entre ciência e política. Como os autores mostram, a expertise por interação é especialmente importante até para reconhecer e defender o valor de outras expertises que ainda não possuem reconhecimento formal (p. 111). E, uma vez que, como argumentam os autores, o expert por interação é altamente desenvolvido em sua capacidade de articulação e reflexão, esse tipo de expertise é altamente necessária para o trabalho de estabelecer diálogos saudáveis e pontes entre as disciplinas.

Não vamos nos ater a todas as discussões que Collins e Evans fazem com relação a esse tipo de expertise; de fato, é um conceito recente (de 2007) e já teve algumas polêmicas: por exemplo, os professores brasileiros Rodrigo Ribeiro e Francisco Lima têm uma longe e elaborada crítica ao conceito, a qual deixo para conversas futuras. Temos muito a trabalhar. Digno de nota é que, recentemente, Collins e Evans lançaram duas obras interessantíssimas, que valem a pena ser lidas e estudadas no momento em que estamos vivendo, e que trabalham melhor a dinâmica do expertise na questão das deliberações políticas: “Why Democracies Need Science” (2017) e “Experts and the Will of the People Society, Populism and Science” (2019). Vamos estudar?

Conclusão: onde está o expert?

Vamos terminar tentando resumir o que toda essa teoria do expertise tem a contribuir sobre as discussões sobre autoridade epistêmica e o papel da comunidade cristã.

Em primeiro lugar, argumentei que precisamos evitar tanto uma negação generalizada quanto uma aceitação acrítica da ciência; ou seja, tanto o anarquismo como o monarquismo epistêmico. Creio que podemos fazer isso reconhecendo a ciência como uma comunidade autêntica de expertise, no entanto, sem deixar de ouvir a voz outros tipos de expertise — meta-expertises e expertises por interação — que estão lançando dúvidas sinceras contra a ciência, mesmo que não sejam epidemiologistas ou virologistas.

Mas como vamos separar o que é uma voz de um autêntico meta-expert, ou expert por interação, da voz de um simples populista ou negacionista? Bem, precisamos usar o mesmo peso e a mesma medida: se vamos utilizar nossos discernimentos ubíquos e locais para julgar um expert em uma área científica, também precisamos aplicar o mesmo discernimento para julgar os experts de outra área, como a médica, por exemplo. O que estou dizendo não é nada diferente da sugestão amplamente feita: checar as credenciais, a experiência e o histórico (os metacritérios) de todos. Só isso já nos livra de muito charlatanismo.

Collins e Evans também têm outro excelente critério (p. 198): verificar como tem sido a interação e o diálogo que um possível expert busca fazer com as tradições já estabelecidas. Os autores dão o exemplo da astrologia: ela não está preocupada em dialogar com a ciência e, por isso, não pode, e nem se preocupa, em dizer que é científica. Da mesma forma, muito charlatanismo pode ser desmascarado se repararmos que boa parte de sua estratégia é rejeitar completamente as outras tradições estabelecidas (dispensando-as como corruptas, ideologizadas, etc) e propor alguma coisa nova do zero, e muitas vezes alistando o público leigo para ganhar apoio e legitimidade (e temos vários exemplos disso no meio cristão). No fim, penso que se não querem dar voz a outros experts, também não faz sentido darmos voz a eles.

No entanto, alguém perguntaria: “e se, por causa do caráter desse tipo de expertise, for impossível realizar qualquer diálogo com a tradição estabelecida?” Esse argumento pode ser levantado por muitos cristãos da seguinte forma: “o incrédulo jamais vai entender as reivindicações do cristão com relação à verdade; portanto, ele não tem como fazer um diálogo proveitoso e saudável com outras tradições baseadas em outras cosmovisões” (e, assim, como consequência, qualquer tentativa de diálogo seria um tipo de comprometimento da fé). O problema desse raciocínio é que ele desconsidera qualquer possibilidade de expertise por interação. É a expertise por interação que permite que a “lógica da prática” (Bourdieu) da comunidade da fé seja articulada e compreendida por outras comunidades e vice-versa — é possível falar sobre, mesmo não vivenciando isso “no corpo”. Afinal, vivemos no mesmo mundo, e temos a mesma constituição humana para compreender a realidade (algo que Collins e Evans chamam de “tese da incorporação mínima”, e reflete também o argumento de Paulo no primeiro capítulo de Romanos). Assim, falar que uma tradição científica, ou qualquer outra tradição, jamais poderia compreender minhas próprias reivindicações sobre a verdade soa como um tipo de gnosticismo, um tipo de verdade que exige uma iniciação particular para ser apreendida. O cristianismo, porém, rejeita isso. A verdade é clara e manifesta: o Deus Santo se revela e fala conosco mesmo nós sendo pecadores. Somos, para começo de conversa, sempre experts por interação no que se trata do reino dos céus.

E é aqui que as coisas ficam interessantes: há, talvez, uma aplicação teológica — ou, alguns diriam, missional — do conceito de expertise por interação. Cientistas podem entender teólogos e teólogos podem entender cientistas. Diversas tradições científicas podem dialogar com cientistas cristãos, e cientistas cristãos podem fazer ciência dialogando com outras tradições científicas (se a ciência secular aceitará isso, aí é outra história, é claro). Não só podem, como devem: esse é o nosso chamado a testemunho público.

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Fernando Pasquini

cristão | professor de engenharia | tecnologia e sociedade | música e jogos de tabuleiro | https://fernandopasquini.eng.br