Não se esqueçam das fadas

Fernando Pasquini
6 min readApr 24, 2020

--

Aos meus filhos,

O tempo que estamos vivendo me faz escrever dessa forma. Eu poderia apenas escrever, de forma geral e impessoal, sobre os temas que vou tratar aqui, mas prefiro me dirigir a vocês, que, é claro, neste momento, ainda nem sabem ler, mas, quem sabe, um dia poderão. Espero que não interpretem isso como um “testamento de leito de morte”, como se eu já estivesse certo de desgraças que nos poderiam sobrevir nos próximos dias. Escrevo porque as incertezas desses dias bastante incomuns e as experiências que os têm acompanhado têm me feito pensar muito sobre o caráter frágil e elusivo da beleza que, durante esse tempo, tem sido apresentada a nós.

A verdade é que o choro de vocês tem sempre me deixado assombrado. Às vezes eu não tenho a menor ideia do motivo. Me assombra, por exemplo, o choro depois de esperarmos meia hora para o trem passar ao lado da rua e percebermos que não vai passar. O choro porque o bem-te-vi que estava em cima do muro, ou o gatinho que estava embaixo do carro, foram embora. O choro porque, no meio de risadas e pulos em cima da cama, de repente você, Suzana, pisa em falso e cai, mas sem se machucar. E então se amontoa no meu colo, com a cabeça no meu ombro. Sabem, existe gente que diz que é reprovável chorar por pouca coisa. Há gente que até mesmo confunda isso com algum tipo de idolatria de coisas terrenas. Mas como é diferente! Pois o idólatra não chora, mas se revolta (sei disso porque é assim que me comporto muitas vezes). Mas a beleza do choro de vocês me assombra porque sei que vocês viram uma brecha da eternidade manifestada em simples brinquedo, mas que agora se quebrou — icabode, “a glória se foi”, é que disseram os hebreus, e é o que também ouço no gemido de vocês, embora demonstrado em coisas minúsculas, que só vocês percebem, e nós esquecemos.

Eu já disse em outro momento que essa tristeza pela eternidade que foge de nós é muito facilmente confundível com a idolatria e, de fato, pode facilmente se tornar uma idolatria. A alegria divina que encontramos nas coisas da terra nos incitam um anseio inconsolável por disponibilidade e repetição infinita da experiência, deixando-nos quase doentes, incapacitados de ver como qualquer outra coisa poderia nos alegrar da mesma forma. São experiências insubstituíveis, mas que, mesmo assim, passam, enquanto o turbilhão do tempo continua nos levando para mais e mais coisas. Eu confesso que sempre acho isso tudo muito estranho. Como disse em outro lugar, “viver é produzir um depósito de experiências e imagens, épicas e cotidianas, que nos fazem querer sempre habitar nelas”. Isso torna o caminhar em frente uma coisa difícil, pois embora saibamos que o futuro nos trará ainda mais imagens e experiências como essas, é difícil deixar essas outras para trás sem saber o que fazer com elas.

Eu tenho esse meu depósito de imagens: da sombra da água uma cachoeira de piscina tremulando sobre a pedra bege, de sonhos com monumentos enormes, em formatos geométricos, em um cenário com a terra iluminada eo céu escuro, ou mesmo de um por do sol passando ao lado do campo de golfe em São Carlos. Elas doem em mim, mas apesar disso, eu espero que vocês também tenham um enorme depósito desses. Oro ardentemente para que vocês o tenham, para que não se esqueçam de que Nárnia está logo ali, dentro do guarda-roupas, e não acabem como a própria Suzana Pevensie, ludibriada pelas coisas realmente pequenas — dinheiro, carreira, arrumação da casa. Por favor, não se esqueçam das fadas, daquelas realidades que estão ali escondidas, que nos encantam, mas que são impossíveis de pegar. E não as destrua, transformando-as em ídolos, tentando conjurá-las por meio de magia perversa que lhes dará a impressão de que conseguiram, mas, na verdade, apenas lhes fizeram se esquecer dessas coisas eternas; essas que transcendem qualquer coisa que possamos apreender nesse mundo, mas que, ainda assim, ainda reluzem entre suas brechas. Não se esqueçam do Criador delas, que é quem as fez assim.

Falar sobre o que quero para vocês também me faz lembrar de alguns dos medos que tenho como pai. Além do medo de eu mesmo me esquecer dessas coisas, me assola ainda mais ser confrontado com a possibilidade de vocês crescerem sem que eu possa estar por perto para abraçá-los, ensiná-los e mostrar essa eternidade das coisas comuns. Trata-se do medo de coisas como perdê-los em algum passeio, ou mesmo que eu venha a falecer, e vocês tenham que seguir a vida de vocês sem mim. Sim, eu sei que devo confiar que o próprio Deus os conduzirá àquilo que ele tem para vocês; afinal, o que vocês virão a se tornar não depende apenas de mim. Mas Ele me faz pai de vocês, e isso significa tanto! Confesso um pensamento um tanto escandaloso, o qual me sinto mal por ter que dizer, mas é sincero: ‘e se Deus não os amar tanto quanto eu os amo?’. E se, para Ele, o destino de vocês for a perdição? Eu não posso garantir isso. Ah, quem quer que leia isso, se achar que estou sendo imaturo ou pecador, que tenha piedade de mim! Mas não consigo ignorar uma das maiores ansiedades dessa existência humana: as imagens do pai olhando ao longe na estrada, esperando o seu filho pródigo, ou de uma mãe, Mônica, que de tanto orar, chegou até a ter a certeza de que não morreria sem antes ver seu filho curvado perante a Cruz. Há quem ore por muitas bênçãos, mas é difícil pensar em uma bem-aventurança tão grande como ter essa certeza na vida. E ser separado de vocês, sem poder segurar em suas mãos para protegê-los e guiá-los, torna isso tão mais difícil! É claro, eu também sei que, mesmo se eu estiver presente para falá-los da glória de Deus e sua graça em Jesus Cristo, também não posso garantir, por meus esforços, que seus olhos se abram. Mas a possibilidade de minha ausência na vida de vocês exige ainda mais minha fé de que Ele fará essa obra utilizando meios que me são desconhecidos. Os tempos já são sombrios, de muita luz de dispositivos, internet e outras distrações, o que tem exigido cada vez mais dos meus joelhos, da minha confiança de que, mesmo assim, Ele pode e irá preservá-los.

Mas, ainda assim, o que pensar sobre esse tempo que já passei com vocês, que independentemente da minha presença no futuro, já se foi e dificilmente será repetido? Como perguntou Eric Clapton para o filhinho de quatro anos que não mais o veria: “você saberia o meu nome, se eu te visse no paraíso? As coisas seriam as mesmas, se eu te visse no paraíso?”. Ah, o tempo pode realmente “derrubá-lo”, “dobrar os seus joelhos”, “quebrar o seu coração”, e tê-lo “implorando ‘por favor’, ‘por favor’”. Pois o tempo passa, e a memória falha. Vocês vão se esquecer de muitas coisas — será que esqueceriam do meu nome? Já falei, aliás, sobre a tristeza que me vem, muitas vezes, ao perceber que tinha esquecido de muitas coisas de minha infância. Fico a pensar no tanto de tristeza que ainda não me sobrevém por causa das coisas que já esqueci e não vou me lembrar; momentos maravilhosos que já passei com pais, tios e avós, em casas, parques e estradas. Será que você, Suzana, irá se lembrar da beleza de correr no asfalto do bairro com as mãos cheias dos pauzinhos e pedrinhas que você achou no caminho, enquanto procura o cavalinho que já pode ter ido nanar? Nós tentamos tirar fotos ou mesmo registrar essas situações para que vocês se lembrem, mas talvez isso mesmo não tenha tanto sentido para vocês como têm para nós, seus pais. Mas, se há algo que vocês possam saber, é que a alegria da eternidade esteve ali, e sim, me levou a me ajoelhar e pedir misericórdia a nosso Pai, para que possamos, como esse dia mostrou tão bem, habitar em sua presença eternamente.

Eu não sei e não posso garantir o quanto vocês irão se lembrar. Mas confio que Ele se lembra e vê. “Mestre, me veja menino”, disse Stênio Marcius. Ele vê como alguém de perfeita memória, pois ele mesmo criou todas elas. Por isso, apenas peço que ele possa sempre deixá-los ver algumas dessas coisas novamente, para que vocês não se esqueçam das fadas.

--

--

Fernando Pasquini

cristão | professor de engenharia | tecnologia e sociedade | música e jogos de tabuleiro | https://fernandopasquini.eng.br