O mundo está longe do ideal, mas não seja chato!

Fernando Pasquini
4 min readMay 18, 2020

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Já faz algum tempo que costumo dizer: não, a tecnologia não é neutra (“nem boa e nem ruim”). A tecnologia, na verdade, é ambígua (“boa e ruim ao mesmo tempo”). E tenho que esclarecer: quando digo “tecnologia”, não me refiro ao conjunto geral de todas as tecnologias, como se existissem tecnologias boas e tecnologias ruins. Estou falando de cada tecnologia: acredito que cada objeto tecnológico é bom e ruim ao mesmo tempo. E não, não é por causa da diferença de usos e de contextos. Mesmo com usos e contextos corretos, as tecnologias inevitavelmente trazem coisas ruins, desde uma dor nas costas até um mal treinamento da atenção.

Difícil, não é? Sim, e por isso é que temos um desafio sério hoje, principalmente para cristãos, de sermos gratos por coisas que estão muito longe do ideal, e nos envolvermos de forma positiva e paciente com elas.

Olha, para falar a verdade, às vezes eu tenho a impressão que, em um mundo perfeito, eu nem sei se os computadores existiriam (ou pelo menos da forma como conhecemos e usamos hoje). Mas isso deveria me tornar ressentido sempre que eu usar um computador? Imagino que não. Pelo contrário, há coisas boas que posso fazer, pelas quais devo ser grato. Sim, é difícil ser grato por coisas de valor ambíguo. Mas não temos escolha.

O contrário disso é, infelizmente, a atitude que eu vejo cada vez mais (e que me tenta, confesso) à medida que nos tornamos mais críticos da cultura em que vivemos. O indivíduo, por exemplo, descobre a importância dos alimentos orgânicos e não consegue mais agradecer por sua comida não-orgânica. Ou acha que o culto online não substitui o culto presencial e se recusa a participar, bravo e ressentido com a igreja.

O pior de tudo é que essa atitude pode chegar até mesmo a comprometer o relacionamento com os outros, por causa da sua insistência e impaciência com quem, na sua visão, é “ingênuo” ou está “em pecado”. Em casos extremos, o indivíduo se torna um crítico de tudo e se isola em seu mundo como ele deveria ser, e as pessoas se afastam, talvez até porque se sentem impuras ao se aproximar de tanta luz. Até segurar um garfo ou faca na presença do indivíduo deixa as pessoas nervosas, porque, afinal, vai saber se essa também não é uma prática irresponsável ou pecaminosa que um mundo mal nos ensinou a fazer sem questionar…

O mundo hoje está cheio de Capitães Fantásticos, e muitos deles cristãos, defendendo ideais de alimentação saudável, meio ambiente, criação (e procriação) de filhos, cultura e educação clássica, ética puritana, etc. Mas, ao mesmo tempo, esses estão cada vez mais se isolando, tornando-se os chatos e estraga-prazeres. E, para falar a verdade, estão negando o chamado de se envolverem, muitas vezes sob uma desculpa de estarem simplesmente tentando ser uma presença fiel na Terra, mas uma presença que não atrai ninguém… (“mas nem deveria atrair”, diriam, escondendo-se atrás da própria piedade).

Mas imagine se Jesus, ao descer até um mundo extremamente longe do ideal, e conhecendo como todas as coisas deveriam ser, ficasse reclamando das bactérias nos pés das pessoas andando descalças? Mas, até no caso de um jovem rico que se achava correto, o texto bíblico nos diz que Jesus, “fitando-o, o amou” (Mc 10:24).

O alerta que sempre tento me fazer é: se o que te marca mais em uma interação com alguém foi o tipo de comida que a pessoa te ofereceu ou um comentário que ela fez sobre como crianças/filhos são um problema, e não o momento que passaram juntos, é bom tomar cuidado e repensar algumas coisas. O mundo que vivemos está longe do ideal em vários — na verdade, quase infinitos — aspectos, e por isso, é importante aprendermos um senso de proporção, ou seja, saber, em cada situação específica, escolher e observar o que realmente importa.

Tenho visto que aprender esse senso de proporção é também aprender a ser humilde nas próprias convicções. É perguntar: “e, se, afinal, tudo isso em que insisto não for tão grande coisa assim? E se o celular/TV/tablet não for a causa de todos os males? E se a comida artificial não fizer tão mal?” Já vi gente arrancar os cabelos para separar o lixo reciclável e, quando o lixeiro passou, viu os ambos os lixos jogados mesmo lugar. Aliás, nos assuntos ambientais, uns dizem que “uma andorinha não faz verão”, e outros contrapõem dizendo que não podemos pensar assim, pois a atitude começa com cada um. Deixe-me falar uma coisa sobre isso: sim, eu concordo que, se pudermos fazer alguma coisa, vamos fazer. Mas o quanto isso vai nos custar, no dia a dia? Às vezes é melhor deixar o lixo reciclável mesmo, e ter tempo para estar com a família e outras atividades (e, talvez, deixar a tarefa para outra pessoa, provavelmente com alguma outra possibilidade de ação mais efetiva). Geralmente critica-se a atitude do cristão que diz que “esse mundo vai passar mesmo, o que importa preservá-lo?”, e eu concordo: o que fazemos hoje é muito sério na perspectiva da eternidade. Mas, ainda assim, de que adiantaria ter um meio ambiente preservado e todos no inferno? Ou, também, uma saúde perfeita, e todos no inferno? Ou uma casa cheia de filhos, sem celular e tablet, fazendo homeschooling clássico, mas sem paz?

Nesse mundo longe do ideal, há batalhas e batalhas, mas umas valem mais do que outras.

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Fernando Pasquini

cristão | professor de engenharia | tecnologia e sociedade | música e jogos de tabuleiro | https://fernandopasquini.eng.br