Pesquisa inútil existe!

Fernando Pasquini
10 min readAug 1, 2019

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Começo com uma modificação da fábula da sopa de pedras. Existem grandes mudanças, começando pela própria lição que quero passar. O protagonista realmente está louco, e em um concurso de culinária.

Era uma vez um concurso de culinária que acontecia anualmente em um vilarejo. Um viajante se inscreve no concurso e se põe a fazer uma sopa de pedras.

Um dos jurados passa, vê a situação e diz: “Cara, isso é uma sopa de pedras! Não serve para nada.”

O viajante responde: “Você é que pensa. Essa minha sopa é uma pequena adição à toda soma de conhecimento culinário da humanidade. Estou feliz com isso.”

Outro jurado passa, vê a situação e diz: “Cara, isso é uma sopa de pedras! Não serve para nada.”

O viajante responde com outro argumento: “Você não reconhece isso hoje, mas um dia, minha sopa será reconhecida. É um pequeno passo, mas ela será usada como base para muitos outros avanços culinários.”

O viajante ainda se vira para uma pessoa que passava ali por perto e diz: “Ei, você. Me ajude aqui com essa sopa. Posso te pagar por isso.”

A pessoa responde: “Eu? Bem, eu tenho mais o que fazer. Prefiro me dedicar a uma receita de comida de verdade.”

- “Você é muito ambicioso, meu caro. Mal sabe cozinhar e já quer fazer comida de verdade? Seja mais humilde. Não vamos mudar o mundo. Temos que começar com pedras.”

Se você já leu o título desse texto, talvez tenha percebido que minha parábola se refere à pesquisa científica.

Sim, depois de alguns anos dentro desse empreendimento, cheguei a uma descoberta surpreendente: pesquisa inútil existe, e não deveríamos estar fazendo.

Eu reconheço o quanto é complicado ter que escrever isso em tempos de negacionismo da ciência. Mas me parece que esse fato óbvio acaba sendo esquecido quando, nas timelines do Facebook, parece ter até virado moda “babar ovo” diante da ciência.

Pode ser que nós nos inconformemos tanto com quem chama tudo isso de “balbúrdia” que esquecemos de pensar se não existiria um ponto por trás disso. Você duvida? O que acha daqueles autores que conseguiram publicar sete de vinte artigos com conteúdos falsos em revistas acadêmicas nas áreas de humanidades? O mesmo também pode existir na área de exatas — e, com isso, não me refiro apenas às pesquisas com dados e experimentos manipulados (que são bem comuns), mas também a todas as sopas de pedras que justificamos usando algumas das falas do nosso protagonista acima.

Talvez seja uma impressão da minha própria área, mas tenho visto centenas de cientistas e pesquisadores que mal conseguem justificar seus empreendimentos publicamente. Tenho visto pesquisadores que escolhem fazer qualquer coisa que “der na telha” e apostam-na num tipo de loteria chamado órgão de financiamento. Se aprovar, aprovou. Se não aprovar, eles entram nas redes sociais e começam a reclamar a falta de investimento em pesquisa. Talvez eu possa chamar isso de estilo “agonístico-procedural” de pesquisa, que terceiriza e entrega qualquer consideração sobre a relevância do trabalho para os órgãos de financiamento. E órgão de financiamento, por sua vez, que normalmente é mais guiado por política do que por expertise (o que é até compreensível, já que é o próprio pesquisador que conhece mais a fundo o que faz), acaba aprovando algumas coisas, mas a sociedade mais ampla não se convence. Para ela, muitos trabalhos são inúteis e só preferências pessoais do pesquisador, que nada têm a ver com os seus interesses.

Tudo bem, alguns pesquisadores, com alguma razão, argumentam que não cabe ao cidadão comum dizer o que presta e o que não presta, uma vez que não têm conhecimento aprofundado sobre os temas de pesquisa. Ele pode até reclamar que faltam investimentos em educação para que o cidadão comum tenha condições de entender o básico, o que é verdade. Mas nem sempre é assim. Fechando-se em sua torre de marfim, no meio de uma elite intelectual, pode ser que o senso comum desapareça mesmo. Tenho visto que, muitas vezes, o pesquisador não sabe justificar-se nem para quem entende do assunto. Falo da minha própria perspectiva: passei vários anos estudando um certo assunto a fundo (o qual comentarei a seguir) e até hoje não consegui entender a relevância de muitos empreendimentos ali. Não é diferente do relato de muitas pessoas: Willem H. Vanderburg, por exemplo, comenta sobre ter três doutorados na área de engenharia e, mesmo depois deles, ainda não entender a relevância deles.

Mas a pesquisa continua sendo feita, eos pesquisadores sempre se escondem atrás da falsa humildade dos dois argumentos do nosso cozinheiro de pedras: o argumento do “tijolinho” (é uma pequena contribuição) e o argumento da “aplicação futura misteriosa” (um dia será útil).

Escrevo isso como um complemento ao podcast #007 da ABC2, sobre Trabalho e Missão, do qual tive a honra e o prazer de participar junto com o Rodrigo Bibo, Leopoldo Teixeira e Alexandre Fernandes. A conversa foi muito boa e os temas levantados são muito importantes,e me sinto muito feliz em poder contribuir. Mas, sendo já minha segunda participação em podcast, também pude perceber ali tanto as vantagens como as limitações do formato. Em um certo momento, a conversa tomou um rumo que começou a me incomodar de alguma forma, mas eu sabia que não conseguiria expressar isso muito bem em poucas palavras, improvisadas, e em um curto intervalo de tempo. De fato, não era o momento e nem o propósito do podcast. Por isso, resolvi tentar expressar isso com esse texto. Mas já deixo claro que isso não é necessariamente uma discordância ao pessoal do podcast. Trata-se mais do quarto* item de Mortimer Adler para a crítica: mostrar onde seu interlocutor está sendo incompleto. É mais como um “sim, eu concordo, mas… ainda tem uma outra coisa que precisa ser levada em consideração”.

Falamos sobre a importância de perceber que temos diferentes vocações, e que nem sempre o trabalho mais urgente ou com resultados mais imediatos é o mais importante de se fazer. Resolver a fome na África é muito bom e necessário, mas isso não significa que toda a humanidade deve estar preocupada com isso durante 100% do tempo. E uma vez que, como cristãos, acreditamos que não temos nas nossas mãos a responsabilidade de resolver todos os problemas imediatamente, estamos livres também para explorar e desenvolver a cultura em vários outros aspectos. Isso ate inclui, por exemplo, pesquisar e entender a beleza por trás das leis que regem o mundo natural — uma atividade que culmina em louvor, pois “grandes são as obras do Senhor, e dignas de estudo para quem as ama…” (Salmo 111.2).

Tudo isso é verdade, e realmente existe uma certa arrogância ou desejo de mudar o mundo que vai muito além do que Deus deseja fazer por meio de nós. Sim, existem pesquisadores ambiciosos e impacientes. Mas meu ponto aqui é que o outro extremo também é perigoso, e existe. Talvez algum pesquisador com quem você conversa entenda todos esses pontos muito bem, e até complete com a percepção de Lutero de que não devemos considerar “espirituais” apenas os trabalhos ligados à igreja. Mas, mesmo diante disso, ele ainda pode continuar desacreditando em algum tipo de pesquisa, porque está enxergando claramente ali a nossa sopa de pedras.

Existe uma falsa humildade, que se recusa a buscar coisas maiores que o próprio Deus nos propõe a fazer, e, como diz um amigo, prefere ficar dias mergulhado na lama só para pegar uma moedinha de cinco centavos.

Eu chegaria até a dizer que, desde que a ciência perdeu qualquer consideração sobre teleologia, nós também perdemos qualquer quadro mais amplo a partir do qual julgar nossas prioridades de ação, tanto como indivíduos como quanto sociedades (esse é o ponto, por exemplo, de Joshua Hochschild). Parece-me que, para o cientista hoje, basta que eu me interesse (ou me divirta) e o órgão de financiamento aprove para que meu trabalho esteja justificado. Ou para usar a máxima que Jacques Ellul atribuiu à sociedade tecnológica: “se eu posso, eu devo”. Vamos cada vez mais rápido, mas não sabemos dizer para onde.

Veja bem, eu entendo que existem coisas muito pequenas que podemos fazer e que são boas e úteis. Mas existe uma diferença grande entre trocar fraldas do seu filho e ficar batendo a cabeça na parede o dia todo. Ambas são coisas pequenas, mas no primeiro caso, nós sabemos justificar porque são boas. O que aconteceria se descobríssemos que um certo empreendimento científico não passa de um monte de gente batendo a cabeça na parede na tentativa de conseguir ter uma boa ideia?

Não dá para justificar a pesquisa científica com argumentos genéricos como do tijolinho ou da aplicação futura misteriosa. Precisamos entender especificamente o conteúdo e o contexto de uma pesquisa para poder dizer que é uma pequena contribuição ou que isso pode ter uma aplicação futura. E precisamos até mesmo atentar para o fato óbvio de que, mesmo nos exemplos de cientistas da história que não previram as aplicações futuras de sua pesquisa, nós não tínhamos pessoas agindo aleatoriamente. Elas tinham suas motivações imediatas, sim, e viam sua utilidade imediata (muitas vezes, apenas estética — a beleza das formas matemáticas ou algo do tipo, o que, para mim, já está muito bem justificado). Ora, ninguém age sem qualquer visualização de um objetivo que pretende cumprir!

Na verdade, já até fiz o mesmo ponto em outro texto mais antigo, aplicando a questão a todo tipo de trabalho. Temos que tomar cuidado com esse wishful thinking de que todo trabalho ou pesquisa é bom porque simplesmente é trabalho ou pesquisa. Todo trabalho tem seu conteúdo e contexto.

Fico me perguntando se tudo isso não seria óbvio demais para ser escrito…

Preciso dar um exemplo, e agora eu realmente vou me expor a uma polêmica. Se você ainda não ficou bravo, tem uma grande chance de ficar agora, e começar a atirar suas pedras (mas que não seja da sopa, por favor). Meu exemplo é a neurociência cognitiva, tema que venho pesquisando há anos.

Não, não quero dizer que toda a área de neurociência cognitiva é uma sopa de pedras. Meu objetivo é mais humilde, dado meu espaço e conhecimento limitados, e também não quero generalizar minhas impressões a tudo o que se faz ali. Mas, como alguém de certa forma do “lado de dentro” (meu doutorado envolveu esse tema), tenho minhas preocupações e, digamos, “desilusões”.

Minha impressão sempre foi a de que a área possui uma quantidade massiva de experimentos extremamente caros (em dinheiro, tempo e esforço intelectual) sem uma noção muito clara de onde se quer chegar. Sim, eu concordo que muitas pesquisas têm caráter exploratório (na verdade, talvez todas tenham um elemento disso em maior ou menor grau), mas penso que o caso aqui é ainda um pouco diferente. Uma pesquisa exploratória ainda conta com uma estratégia clara, que pelo menos compreenda os pressupostos por trás do experimento e entenda suas restrições. Mas isso não parece existir.

Talvez eu ainda precise pensar mais para justificar isso, mas o que tenho visto é que existem muitos problemas conceituais e epistemológicos que precisavam ser resolvidos muito antes de sairmos enfiando pessoas em máquinas de ressonância e gastando horrores para chegar a conclusões pouco significativas (mas que alguns dizem que são “pequenos tijolinhos”). A neurociência já é uma área com muita controvérsia, e não é raro surgirem artigos desmentindo resultados de milhares de publicações anteriores por conta de uma ou duas linhas de código do software de processamento. Os setups experimentais são altamente complexos e os algoritmos operam muitas vezes como “caixas-pretas”. Os melhores pesquisadores da área de fato argumentam que não devemos tratá-los assim, e tentar entender tudo o que está acontecendo por dentro dos procedimentos e algoritmos, mas… começo a pensar se tais apelos não começam a exigir uma capacidade sobre-humana de compreensão e controle do processo (aliás, é por isso que acaba sendo muito fácil falsear resultados). Então eu me pergunto: quando um certo procedimento começa a sair do nosso controle, não seria o caso de dar um passo para trás?

E os problemas não são apenas práticos. Existem também pressupostos muito controversos em torno de teorias cognitivas e filosofia da mente. Os experimentos muitas vezes já pressupõem, por exemplo, cérebros como simples processadores de informação, ou ignoram aspectos corpóreos ou situacionais, como nas discussões já até antigas por Hubert Dreyfus, John Searle ou Francisco Varela. Dificuldades práticas e teóricas geram vários tipos de bias experimental, todos muito difíceis de serem percebidos. Mas nós insistimos, e falando que “alguma coisa ainda dá para encontrar”. Ignoramos que “big data needs big theory”.

Por fim, talvez também não esteja claro nem quais são nossos objetivos ao tentar estudar o cérebro. Se conhecimento é poder, seria o nosso desejo controlar o cérebro? Mas o que isso significaria? Vale a pena buscar esse conhecimento? Ou, ainda mais, qual o custo disso? Tenho visto que poucos pesquisadores também sabem identificar quais são as razões subjacentes aos empreendimentos da neurociência cognitiva. E, mais uma vez, isso também se deve à falta de um pano de fundo conceitual mais amplo, teleológico, a partir do qual encontrar a importância relativa dos nossos empreendimentos.

Devo acrescentar: eu não nego que há pesquisadores muito competentes nessa área, os quais eu mesmo conheço e tive muito prazer em trabalhar junto. E quem sabe alguns deles até consigam me convencer, oferecendo boas justificativas? O problema é que me parece que, quanto mais estudo e adentro a área, mais longe pareço estar dessas justificativas. E isso não tem acontecido só comigo: tenho visto em vários alunos que adentram na área e também não se convencem facilmente (mas, é claro, entram de qualquer forma porque também não tem um quadro de referência amplo para compreenderem o que vale a pena fazer — o que importa, na maioria das vezes, é só conseguir o título de mestrado ou doutorado fazendo qualquer coisa que se ofereça ou se pague).

Talvez essa seja uma área que realmente exija uma maturidade intelectual fora do comum para se poder entender a importância e utilidade. Mas aí voltamos à minha consideração anterior: não poderia ser também uma torre de marfim, mantida por uma elite intelectual que nega o senso comum? E se estivéssemos todos com medo de dizer que o imperador está nu?

De qualquer forma, eu resolvi fazer o que acredito que todos deveríamos estar fazendo: dar um passo para trás e pensar antes de fazer. Talvez eu tenha dificuldades com isso, numa época em que se valorizam “resultados” quantificáveis e sensacionalistas. Mas se quero empreender qualquer coisa, aprendi que preciso prestar contas, primeiramente, à sociedade que julgo estar servindo, antes de sair gastando seus recursos irresponsavelmente com sopas de pedras.

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Fernando Pasquini

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