Wendell Berry e a liberdade de ir para onde a tecnologia nos obriga a ir

Fernando Pasquini
3 min readAug 28, 2020

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Berry, Wendell (2015). The unsettling of America: Culture & agriculture. Catapult. Páginas 78–79. Tradução minha:

“Os especialistas que conceberam esses modelos [de fazenda tecnológica] […] sem dúvida acreditam nas doutrinas da liberdade e dignidade pessoal, igualdade de oportunidades etc. […] Mas é preciso perguntar se eles não disseram essas coisas impensadamente — seja porque são as coisas certas a se dizer em uma democracia, ou porque são as coisas mais persuasivas a se dizer, ou porque têm o hábito de dizê-las. […] Essas garantias são sempre incidentais, fora dos limites de qualquer inovação supostamente benigna (e lucrativa) que esteja à mão. As pessoas não serão livres, nem dignas, nem mesmo bem alimentadas, só porque algum especialista diz que sim. O que é dito é que elas serão permitidas, em certas áreas — pois é isso que esses visionários do agronegócio estão de fato dizendo. As pessoas serão permitidas de fazer certas coisas em certos lugares prescritos por outras pessoas. Eles serão livres para trabalhar nos lugares reservados para o trabalho, livres para se divertir ou relaxar nos locais reservados para recreação, livres para viver (o que quer que isso signifique) nos locais reservados para viver.

Portanto, há várias coisas que as pessoas não serão livres para fazer na nação do futuro, que será alimentada por essas fazendas do futuro. Elas não vão morar onde trabalham ou trabalhar onde moram. Elas não vão trabalhar onde se divertem. E, acima de tudo, não vão se divertir onde trabalham. Não haverá cantoria nessas plantações. Não haverá equipes de trabalhadores ou vizinhos rindo e brincando, contando histórias ou competindo em testes de rapidez, força ou habilidade. Não haverá passeios de férias ou piqueniques nessas plantações porque, em primeiro lugar, os campos serão feios, todas as graças da natureza foram excluídas e, em segundo lugar, porque eles serão perigosos.

Pouquíssimas pessoas, provavelmente nenhuma delas, possuirão essas fazendas. Pouquíssimas trabalharão com elas. A maioria delas, mais mesmo do que os noventa e cinco por cento que agora vivem em contextos urbanos, viverá longe da terra, separada dela pela distância, por ‘zonas tampão’, pela economia, pela estrutura oficial. Elas nada terão a dizer sobre como a terra é usada ou sobre o tipo ou qualidade de sua produção. Pois essas fazendas serão obviamente projetadas para a propriedade e gestão de grandes corporações do agronegócio que irão controlá-las ‘privadamente’ e controlar o mercado também. As pessoas comerão o que as empresas decidirem que comam. Elas estarão desligadas e distantes das fontes de suas vidas, unidas a elas apenas pela tolerância corporativa. Elas se tornarão puros consumidores — máquinas de consumo — ou seja, escravos dos produtores. O que essas fazendas-modelo sugerem de forma muito poderosa, assim, é que o conceito de controle total é impossível de confinar dentro dos limites do empreendimento especializado — que é impossível mecanizar a produção sem mecanizar o consumo, impossível fazer máquinas de solo, plantas, e animais sem fazer máquinas também de pessoas.”

Um pouco antes, na página 77 (grifo meu):

“O especialista […] está interessado apenas no o modelo, nunca no exemplo. Ele está interessado no futuro da agricultura, não em sua história.

É por isso que a influência de seu trabalho não o interessa; se ele coloca uma máquina no campo para ‘economizar trabalho’, ele não pergunta sobre o destino das pessoas substituídas. Ele está trabalhando ‘no futuro’, o que o deixa em liberdade simplesmente para deixar de fora o que será deslocado ou o que não funcionar. É por isso que não há pessoas nessas cenas de fazendas do futuro, tanto quanto também não há nas fotos de paisagens das revistas de conservação ambiental; nem o especialista em agricultura nem o especialista em conservação ambiental têm qualquer ideia de onde as pessoas pertencem na ordem das coisas. Nenhum dos dois pode conceber uma paisagem domesticada ou humana. As pessoas são complexas, contraditórias, imprevisíveis; são percebidas pelo especialista como uma espécie de lixo, poluentes da natureza pura, por um lado e poluentes da tecnologia pura, de controle total, por outro.”

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Fernando Pasquini

cristão | professor de engenharia | tecnologia e sociedade | música e jogos de tabuleiro | https://fernandopasquini.eng.br